O silêncio é o estampido de uma selva farta
Nos idos anos 90, lembro de estar sentada em frente a um aparelho de toca-fitas (dizer isto faz-me sentir realmente velha). No som, Legião Urbana, uma banda de rock que foi um grande fenômeno no Brasil. Não era possível ganhar carteirinha oficial de adolescente quem não soubesse a letra de “Faroeste Caboclo” decorada, uma canção com nove minutos e 168 versos.
Passava ali as tardes a ouvir a fita. Rebobinava, ouvia outra vez, e outra, e outra. Memorizava esta e outras canções famosas do Renato Russo, conhecido como compositor de referência. Neste mesmo álbum, havia um tema chamado “Índios”, era uma canção bonita - com muitos pontos problemáticos que não importam para este texto. Mas que tinha um verso em especial que me incomodava: “(…) e fala demais por não ter nada a dizer”.
Desde a primeira vez que o ouvi senti desconforto. Passei, depois disto, muitos e longos anos com este tal desconforto sem saber apontar o motivo. Era só uma adolescente e a sensação era de ser injusto, parecia pessoal, porque pensava ter a dizer, mas não estava autorizada a isto. Parecia haver algo errado com aquele verso, e sempre que em algum ambiente alguém o referia, entrava em estado de irritação, como se fosse preciso me defender dele que invalidava minhas possibilidades, anulava minhas hipóteses, não era possível contra-argumentar, era uma retórica binária e inabalável, um ponto final no assunto: quem fala demais não tem nada a dizer, bem como quem silencia é sábio e quando falar, dirá algo a ser validado. Ainda que, ele, o próprio Renato Russo, contraditoriamente compusesse sempre músicas de 10 minutos dizendo muitas coisas, todas as que queria, inclusive que “não se devia falar tanto assim”.
Venho de uma família conservadora. A mais nova de três, a caçula, derradeira. Fui uma criança alegre, falante, que gostava de conversar, que gostava de fazer perguntas. Mas minha memória é recheada mesmo de muitos silêncios sem fim; silêncio à mesa, silêncio quando se assiste o telejornal, silêncio quando o adulto fala, silêncios sem fim na escola católica. Não pode falar, não pode fazer perguntas, “essa menina fala demais, essa menina pergunta demais, essa menina argumenta demais”. Minha mãe frequentemente era chamada à escola para ouvir queixas, todos tinham queixas sobre mim. A queixa: eu falava. Não enfrentava adultos, não desrespeitava ninguém, não brigava nem causava problemas, apenas falava, mas isto já era muito, não podia, “não era adequado”, dizia a pedagoga da escola em tom condescendente.
E então eu entendi parte do problema: meninas não podem falar. São educadas para serem serenas, silenciosas, discretas, domesticáveis e obedientes, fui educada para isto também, educada também por alguém que nunca pôde falar e reproduziu fidedignamente para mim este papel, tentando desempenhar da melhor forma aquilo que houvera aprendido. Por muito tempo achei ter algo errado comigo porque senti a vida inteira que tinha coisas a dizer, queria dizer coisas, queria ter minha opinião escutada, considerada, validada. Mas nascer mulher era não ter garantia da ação comunicativa porque não era possível encontrar sequer uma pessoa capaz de me ouvir genuinamente. Era nascer para domesticar a sua Eva selvagem, que abriu a boca para condenar a humanidade à desgraça, e fazê-la tornar-se a virtuosa Virgem Maria.
Isto era um problema, uma contradição a ser solucionada, meu grande paradoxo. Por causa dele, e para me livrar dos castigos, fui aprendendo também a passar muito tempo sozinha explorando neste tal silêncio os espaços proibidos da escola, o lugar onde as freiras ficavam. Subia devagarinho as escadarias, abria as cortinas, desvendava as portas suprimidas, entrava nos corredores ocultados, via freiras conversando baixinho, ouvia o que elas falavam. Procurava em mim a virgem Maria e me confrontava a cada dia com a Eva. Fazia disto o meu segredo, a curiosidade era minha possibilidade de silêncio, e aprendia com ele, tínhamos uma boa relação, era um parceiro. Mas eu queria contar minhas descobertas, queria partilhar o que via. Concluí, portanto, que o problema não estava no silêncio em si, este era produtivo; em meu caso, meu próprio silêncio era o estampido de uma selva farta, a boca muda onde gritavam mil vozes caladas. Porque dialeticamente era justamente a palavra e que dava sentido ao silêncio, numa unidade em coexistência.
Mas então porque o silêncio, por si só, é assim tão vangloriado e enaltecido, enquanto a voz, por sua vez tão demonizada, ou diabolizada como medíocre e menor? Isto ocorre justamente porque o silêncio quando não é dialético torna-se reacionário. E que este teor falacioso e unitário do silêncio, por ele mesmo, é instrumentalizado de forma equivocada e conveniente, porque o silêncio de alguns é o projeto de projeção da voz de outros.
Em a República do Silêncio, Jean Paul Sartre conta sobre esta retórica do silêncio utilizada na Alemanha Nazista como este recurso de constrangimento e sendo assim “[…] cada palavra se tornava preciosa como uma declaração de princípios porque (…) uma só palavra seria suficiente para provocar dez, cem detenções. Essa responsabilidade total, na solidão total, não é o próprio desvelamento da nossa liberdade? Aquele desamparo, aquela solidão, aquele risco enorme foram os mesmos para todos”. O que Sartre diz com isto é que palavra é um risco para alguns, justamente porque “(…) o falar como interlocução ativa sobrepõe ao silêncio instaurando uma fissura dialética”.1
A Grada Kilomba, em seu livro Memória da Plantação2, traz a memória da Anastácia, uma princesa Bantu escravizada no Brasil que foi condenada a usar máscara de ferro por toda a vida, podendo retirá-la somente para se alimentar. Anastácia não é um exemplo único. A máscara de ferro era uma prática comum da atividade colonial para implementar o silêncio e silenciamento, e conduzir a boca do outro como um lugar de mudez e tortura.
Com os povos indígenas, o empreendimento de aculturação, a evangelização jesuíta e, por fim, a proibição de Marquês de Pombal, fez desaparecer cerca de mil línguas faladas só no território brasileiro, sem contabilizar as línguas das centenas de outros povos nativos latino americanos. Consegues escutar quanto barulho contém este grande silêncio? O enfrentamento desta regra era severamente castigado, política que se prolongou até a ditadura militar, a exemplo do Reformatório Krenak, que retirava a força crianças indígenas de suas famílias e levadas ao internato para compulsoriamente aprender o português, sob punição e tortura em caso de falarem a língua de seu território.
Sobre tudo isto, caso estivesse aqui, Sartre diria que “(…) não podemos esperar conservar à luz do dia as austeras virtudes da República do Silêncio e da Noite”. O silêncio era uma virtude austera para Sartre. Eu, com essa minha voz ranhenta que já não se cala, como ema grunhindo para o vento, completo dizendo que só romantiza o silêncio quem viveu no privilégio de nunca ter sido silenciado. Os outros, estes querem o grito.